terça-feira, fevereiro 19, 2008

les misérables



um dia destes, a passar de carro pelo Rossio, reparei numa pessoa. não é novidade, eu reparo em muitas pessoas. nem tão pouco é inédito o que me veio à cabeça. muitas vezes sou assaltada por pensamentos assim, que apesar de tudo ainda me tornam num ser humano mais ou menos consciente.
ela baixa, preta, não muito magra, com um penteado tipicamente africano, com paupérrimo aspecto. a conversa das minhas amigas no banco da frente, as gargalhadas do costume e a amywinehouse a tocar no rádio passaram para uma outra dimensão, e eu fiquei ali, perdida em pensamentos, como é costume, até elas dizerem:
"-não foi ema?"
antes disto, dois minutos atrás, eu reparei na humildade dela, ao receber sucessivos nãos e olhares indiferentes. dois senhores voltaram então atrás, para lhe dar umas moedas, prémio da sua humildade, pensei eu. transportei-me para lá, imaginei-me dentro do corpo dela. como reagiria eu a tantos nãos? não bem, creio; com acessos de raiva contra uma sociedade que me pôs de parte. por tudo isto pensei na fortuna colossal que tenho, em ir passear para o chiado com amigos, no carro de uma delas.
tal como para a amy, as lágrimas dela também têm de secar por si próprias (tocava na rádio "my tears dry on their own"), não tendo ninguém que lhas seque. bem sei que não teria dinheiro para todas as esmolas que me são pedidas, diariamente, mas tenho pena de não pôr a mão na consciência mais frequentemente, e de não voltar atrás, como os dois senhores, por umas moedas, que significariam o "pão de cada dia nos dai hoje".


as minúsculas não foram um acaso da minha preguiça frente ao teclado: é que somos todos tão pequenos.

8 comentários:

Kimaya disse...

Gostei imenso do Texto. Se eu recebesse tantos naos quantos essa senhora recebeu, não aguentaria.
Sim, temos uma fortuna, cada um à sua maneira. Nao me interessa se me restam 37€ na conta, tenho cama, amigos, um computador, os livros que acompanham... Sou riquíssima, e tu és rica por ousares dizer que desejarias meter a mão na consciência mais vezes. Eu também, mas porque ao ler este texto me alertaste.
Kisses

Francisco disse...

fiz um texto parcido há tempos (não tão bom). Era sobre um daqueles gajos que faz malabarismo no chiado me ter pedido umas moedas e eu disse que não tinha e ele ficou com aquela cara "claro, claro", quase desiludido.

Francisco disse...

parecido

Jaime disse...

Gostei bastante. O texto põe uma pessoa a pensar. Portugal é um dos países da Europa com uma distribuição do rendimento mais desigual, mas não reparamos ou não queremos reparar nisso...

verdades_e_poesia disse...

Dar dinheiro muitas das vezes não é solução. Só piora, pois podes estar a contribuir para coisas que não valem a pena e que muitas das pessoas que o pedem, de facto fazem...
Havia na minha terra Natal, um bêbedo que insistentemente pedia às pessoas dinheiro. Quase nunca lho dei, pois eu fazia sempre questão de lhe perguntar para que queria o dinheiro, ao que me respondia - «para comer uma sandes». Então, imensas vezes, lhe dei uma sandes... ;)

pegueitrinquei disse...

Excedeste-te com este post. Agora é a minha vez de "gosto tanto de te ler". E agora percebo o teu silêncio no banco de trás do meu carro. Agora sim, posso dizer que entendo. Não é muito teu ficares calada durante muito tempo. Talvez agora faça sentido a frase do Telminho ... temos "falta de necessidade" e nem nos apercebemos disso.

WELL DONE.

Maria del Sol disse...

Curiosamente estive a pensar neste mesmo assunto ainda há pouco tempo para um post, mas acabei por não o fazer. E acho que agora também não o farei, por enquanto tu disseste tudo o que vale a pena ter em conta.

Menphis disse...

Quase todos os dias penso nisso, no quanto somos felizardos e quanto somos pequenos, mas a vida é isto mesmo.

Quando eu era um simples estudante sonhador para ser um dia, talvez, jornalista, pensei sempre que iria fazer uma reportagem sobre essas pessoas, descobrir os gostos,, os sonhos perdidos, enfim, a vida, infelizmente não consegui concretizar esse sonho, mas fiquei sempre com vontade em conhecer essas vidas tão vazias de alegria mas tão cheias de significado para nós, pequenos felizardos, porque podíamos aprender muito com eles.